O Filho Posadista
O Filho Posadista Discurso de Nadyr Rossetti - Câmara Federal Conto Rui, ou Marcos, ou Vinicius Vadico e Tocatas
Elegia para o Rui Jornal Afinal - A Morte do Trotskista de Nova Orleans Ouça Rui Pfutzenreuter Militância Estudantil
O Filho Posadista

Discurso de Nadyr Rossetti - Câmara Federal

Conto Rui, ou Marcos, ou Vinicius

RUI, OU MARCOS, OU VINÍCIUS
(Filipe Marchioro Pfützenreuter)

Considerações iniciais acerca deste relato: aos que gostam de Orleans, talvez a leitura lhes interesse por discorrer acerca de um personagem local; aos que gostam de bossa nova, sugiro seguir imediatamente para a próxima obra, pois este conto não discorre sobre temas aristocráticos, tampouco sob a ótica de seus respectivos constituintes; por fim, aos que gostam de literatura, o enredo eventualmente lhes possa interessar, mas ressalto de antemão que a forma com a qual a narrativa é conduzida não possui nada de original, afinal, tal qual o fez Brás Cubas, narro estas memórias de dentro do meu caixão, cujo zinco com que foi forjado impediu esta pobre alma de transcender às alturas.
Bem, chamo-me Rui Oswaldo Aguiar Pfützenreuter, ou Marcos, ou Vinícius. Muitos de vocês, nobres leitores, talvez não se lembrem de mim. Sou o filho jornalista do Vadico, aquele músico casado com a Dona Leoni, aquele que compôs a melodia do hino de nossa cidade, que por anos regeu o coral da Igreja Matriz e que adorava tocar choro em seu violino... Quem sabe de meu pai vocês estejam lembrados... Fui forçosamente trazido para cá em 1972, aos 29 anos de idade. O motivo de minha morte precoce? Quiçá eu tenha depositado muita fé na humanidade e, diferentemente de Dom Quixote, tenha escolhido inimigos mais perigosos do que meros moinhos de vento, os quais ingenuamente me dispus a enfrentar tão somente com a nobreza de minhas ideias e com o meu coração, sempre repleto de amor pelo próximo e de esperança em relação a uma sociedade mais justa e igualitária.
Meus familiares me advertiram dos perigos que iria enfrentar quando, ainda cursando a faculdade de Jornalismo e Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, comecei a travar as primeiras batalhas em prol dos marginalizados. Já naquela época, eu tinha consciência de que o Ensino Superior era um privilégio para poucos e que, por esforço de meus pais e avós, eu fazia parte desse grupo elitizado; por isso não media esforços para informar e politizar aqueles que estavam do lado de fora dos portões da universidade através da publicação de folhetins, abordando-os diretamente nas ruas ou indo ao encontro deles na periferia da grande capital gaúcha. A possibilidade de adquirir e compartilhar conhecimento me satisfazia por um lado; por outro, saber que muitos jovens - muitos com potencial para serem tão ou mais inteligentes do que eu - estavam fadados à ignorância, ao subemprego e, consequentemente, à mercê daqueles que governavam nosso país era algo que me incomodava profundamente.
Na verdade, eu sempre me preocupei com aquilo ou aquele que supostamente não me dizia respeito. Essa parecia ser a minha sina. Ainda adolescente, foram muitas as broncas que ganhei de minha mãe por reiteradamente entregar minhas roupas e calçados ao primeiro desprovido que passasse por mim na rua. A propósito, as amigas a advertiam de que o filho perambulando maltrapilho ou seminu poderia denegrir a imagem da família perante a sociedade orleanense, embora minha mãe se demonstrasse mais preocupada com a forma através da qual conseguiria recuperar dinheiro para me vestir novamente do que com aquela superficialidade.
As coisas começaram a ficar mais perigosas quando me mudei para São Paulo e me integrei ao PORT (Partido Operário Revolucionário Trotskista). Estávamos no auge da ditatura militar e, obviamente, intelectuais e operários que unissem esforços contra o governo e contra os empresários que lhe eram cúmplices eram vistos como terroristas que precisavam ser eliminados. Castelo Branco, Costa e Silva, Médici... os tempos eram difíceis no trânsito entre as décadas de 60 e 70: boa parte do empresariado submetia seus funcionários a longas jornadas de trabalho diário em troca de um salário que mal dava para subsidiar alimentos básicos e pagar os impostos; já os militares, que censuravam qualquer manifestação de desapreço ao regime, jamais tolerariam uma greve, mesmo que o motivo fosse a recusa ao diálogo por parte dos patrões.
Vocês, leitores, devem estar perguntando com que propriedade um estudante de jornalismo, filho de um exator da Coletoria Federal, analisa a situação trabalhista da época. Pois eu lhes digo que trabalhei por seis anos em uma mesma empresa para me sustentar em São Paulo; portanto, conheço a realidade do trabalhador através de um estudo de caso e de uma pesquisa experimental, cuja amostra foi composta por minha própria pessoa e por meus colegas de trabalho. Oportunidades para trabalhar em grandes jornais não faltaram. Os editores-chefes, contudo, estavam mais interessados no meu domínio da modalidade culta da língua do que no conteúdo e fundamentação do meu discurso. Marx, Trotsky e Posadas certamente lhes causariam repúdio. Não quis me prostituir. Nem mesmo por um segundo passou pela minha mente ascender profissionalmente com aquilo que era a minha grande paixão – o jornalismo – e deixar meus companheiros operários para trás. Éramos ratos domésticos engaiolados a correr em uma esteira circular sem nos movermos do lugar. Ainda assim, era em meio aos operários que eu me sentia bem, imerso na humildade e solidariedade que compunham o seu contexto social. Eu não iria abandoná-los, jamais. As investidas contra o sistema foram se ampliando, meus colegas de militância e eu promovíamos reuniões clandestinas com os trabalhadores, escrevíamos jornais igualmente clandestinos e distribuíamos para a população nas ruas da maior cidade sul-americana. Aqueles do grupo que dispunham de maior formação acadêmica se expunham ainda mais, promovendo palestras sobre o cenário político nacional e propondo caminhos para uma revolução não armada. Eu estava entre estes.
Com toda aquela exposição, sabia que os militares já estavam à minha procura. Não reivindicava nada para mim: enriquecer não me apetecia, não aspirava a nenhum cargo político, tampouco desejava prestígio na academia ou mesmo diante da massa. Ainda assim, meus companheiros e eu éramos considerados um perigo para a nação.
Enfim, o meu dia havia chego. O DOPS decidira investir pesadamente contra os militantes naquela manhã nebulosa. Os agentes já haviam torturado trabalhadores em praça pública e prendido tantos outros sem mandado de prisão e sem lhes conceder direito à defesa. Vândalos em meio aos bem-intencionados, certamente, existiam; entretanto, não houve qualquer tipo de distinção. Eu observava tudo a distância, mais precisamente, de um apartamento no quarto andar de um edifício antigo, no qual um casal de amigos havia corajosa e fraternalmente me concedido abrigo. Àquela altura, minha residência provavelmente já havia sido arrombada pelos militares e, se não houvesse empreendido fuga, já estaria em suas mãos impiedosas e sanguinolentas. Eu estava seguro, mas temia por meus companheiros que, naquele horário, estavam trabalhando no fechamento da edição de nosso jornal semanal nos porões de um prédio próximo. Por uma fenda entre as cortinas amareladas que encobriam meu observatório, vi os agentes do DOPS rumando para lá. Não havia múltipla escolha: ou eu me entregava para os militares, ou todos os meus colegas e, juntamente com eles, todos os arquivos que denunciavam e incriminavam o poder público nacional seriam dizimados.
Detive-me por alguns instantes. Lembrei-me de minha mãe sentada na sala de estar, costurando colchas de lã de carneiro que comporiam o enxoval da próxima noiva a se casar na Paróquia Santa Otília. Lembrei-me de meu pai escrevendo à mão as notas de sua próxima composição em uma folha pautada. Recordei-me das águas frias do Rio Tubarão em que meus irmãos e eu nos banhávamos, mesmo diante do veto paterno. Por fim, veio-me à mente a carta que meu avô havia me endereçado, na qual ingênua e zelosamente tentava me dissuadir da militância, antevendo que eu nunca mais regressaria à Cidade das Colinas. Então, livrei-me dos binóculos, verifiquei se havia fichas telefônicas no bolso das calças e desci correndo as escadas em direção ao orelhão que se encontrava na esquina. Só houve tempo para ouvir um suspiro do outro lado da linha - provavelmente, do Glauco - e dizer “libertad”, que, em nosso código, significava “fujam imediatamente”. De súbito, senti um forte golpe em minha nuca e, quando pude despertar, já estava em uma das unidades de tortura do DOPS: o verdadeiro inferno de Dante.
Não se preocupem, estimados leitores, pois não dedicarei texto à descrição das técnicas de tortura das quais fui vítima. Não pretendo reproduzir aqui o sensacionalismo habitual com o qual a imprensa brasileira tem mantido o interesse de seu público nos últimos anos. Prefiro que vocês se lembrem das causas pelas quais lutei juntamente com tantos outros militantes, alguns dos quais são hoje reconhecidos como mortos e desaparecidos políticos. Os leitores mais assíduos talvez estejam se lembrando de Os Sertões, de Euclides da Cuja, que narra a Guerra de Canudos. Seu protagonista, Antônio Conselheiro, comoveu-se com a situação do povo baiano, o qual, mesmo vivendo praticamente na miséria, ainda precisava conceder ao governo, sob a forma de tributos, parte de sua produção agrícola ou de seus poucos e raquíticos animais, ou ainda, o pequeno lucro obtido com as respectivas vendas. Canudos surgiu, então, como uma comunidade alternativa, onde tudo aquilo que se produzia era dividido igualmente entre todos os seus membros, ninguém prosperava a partir da miséria alheia. Se a ambição acometeria alguns dos habitantes de modo a comprometer o seu desenvolvimento, não sei, mas certamente o projeto de Conselheiro era mais coeso do que o dos republicanos.
Embora os contextos espaçotemporais sejam obviamente distintos, tanto o povo de Canudos quanto os militantes de esquerda foram eliminados como criminosos. Nenhum deles almejava lucrar sobre o Estado ou ambiciosamente assumir seu poder, o que ambos desejavam era simplesmente uma vida mais digna para seus pares, já que seus representantes legais não se mobilizavam para tanto. Esses são apenas dois exemplos entre tantos outros presentes na história da humanidade, alguns com personagens mais ou menos conhecidos, tal qual Nelson Mandela e Chico Mendes, outros cujos componentes permanecem no anonimato. Por isso, não me vejo como um herói, sou apenas um dos muitos que dedicaram suas vidas a causas coletivas.
Para finalizar, gostaria de ressaltar que, se hoje me foi dada a oportunidade de narrar estas memórias do interior de meu caixão, é porque meu pai não poupou esforços para, ao menos, recolher o meu corpo, apelando ao DOPS e, até mesmo, à Presidência da República. Vejam que ingrata ironia: ele, que cumpriu com suas obrigações para com a pátria, servindo honrosamente ao exército na Revolução Constitucionalista, teve seu filho assassinado pelos próprios colegas de farda.
Hoje, minha família me enterra sem saber se, de fato, sou eu quem está dentro da inviolável urna fúnebre sobre a qual deposita suas lágrimas, ainda que segura da incoerência de meu atestado de óbito, no qual consta “morte por anemia aguda traumática”. Nem sequer os vermes da minha querida Orleans terão o mesmo benefício dos vermes de outras terras. Os daqui certamente enfrentarão mais dificuldades para penetrar no zinco e roer as frias carnes de meu cadáver do que aqueles que corroeram Brás Cubas em seu nobre caixão de madeira envernizado.

Vadico e Tocatas
 Zurene Manique Barreto
Relembro...
Orleans jubilosa vivia
sua anual “Semana Cultural”
e vozes uníssonas anunciavam
a Abertura de seu Centenário!

A cidade irradiava felicidade
e seus habitantes participavam exultantes
daquele evento único
marco histórico grandioso!

Foi dignificante apreciar
as danças infantis
participar da Comissão Julgadora
dos concursos de Poesia, Teatro
assistindo tão de perto
todo o desempenho da comissão Pró-Centenário!

Foi gratificante participar das solenidades
do 2º Aniversário da Academia Orleanense de Letras
foi belo observar que Orleans preserva
toda a sabedoria e tradição de seus ancestrais 
e incentiva, destaca, enaltece
os valores artísticos de sua terra
e todos os segmentos culturais.

E na tranqüilidade de um lar
“Tio Vadico”, com um olhar longínquo e sonhador
harmoniosamente executava seu violino
enquanto Reinaldo num ritmo compassado
tocava suavemente nas teclas do piano...

Num breve intervalo
“Tia Leony” nos ofertava
o inebriante néctar de Baco
que aquecia tão docemente nossos corações...

E de repente
vislumbrei a estante
e sobre esta, um porta-retratos
emoldurado pelo sorriso sereno de Rui
que nos espreitava carinhosamente.
Sua imagem invadiu o recinto
e transmitiu bem mais do que paz,
traduziu muito mais que saudades...

Evidenciou a ausência de um ser
que marcou presença nesta vida
e que jamais será esquecido;
posto que não se esquece
todo aquele que tão somente praticou bondades
e lutou por justiça social
em prol do bem-estar da coletividade.

À Família Pfützenreuter, com admiração, respeito e muito afeto.
Zurene Manique Barreto
Criciúma, 20 de março de 1985
Elegia para o Rui
Jornal Afinal - A Morte do Trotskista de Nova Orleans
A Morte do Trotskista de Nova Orleans.


Escrito por Jurandir Camargo e publicado no Jornal Afinal, Florianópolis – Santa Catarina, Ano I, Número 2, maio de 1980.
A história que eu vou contar é uma história cheia de ódio. Foi no fim da semana passada, quando um velho pai, recostado na banqueta do piano da sala, chorou pelo filho que foi morto há oito anos, nos porões do Doi-Codi, mais precisamente em 1972.
O velho pai é o funcionário público aposentado Osvaldo Pfützenreuter, um homem triste que é o violino mestre da New Orleans Band – um conjunto que anima os bailes pelas redondezas de Nova Orleans, aqui no sul de Santa Catarina.
E o filho morto é o jornalista e trotskista Rui Osvaldo Aguiar Pfützenreuter, também nascido em Nova Orleans, e que começou a ser preso lá por 1966 até ser enterrado nas covas rasas do Cemitério de Perus, subúrbio de São Paulo, no dia 15 de abril.
Mas nesta história tem ainda uma mulher, dessas pedra noventa, dona Leonia Aguiar Pfützenreuter – que até hoje se orgulha de ter parido um trotskista. E aqui não vai faltar também um diário, desses livros de armazém já amarelecido pelos oito anos de tristeza, e com onze de suas páginas arrancadas pela polícia.
É o diário de Rui Osvaldo Aguiar Pfützenreuter, que vamos ler a última página escrita, a de número 49: 
“Deixo aqui lavrada a minha profissão de fé marxista, o meu propósito revolucionário sustentado dentro do trotskismo, de minha luta, de minha integração total, consciente, de minha ação pelo progresso, pelo socialismo. Esta minha decisão foi consciente e nisso estou tranqüilo, seguro. E sei dos riscos, dos perigos. Mas sei também que embora me eliminem fisicamente, jamais poderão varrer a minha contribuição, derrubar toda a valiosa herança que deixo a humanidade.”
_________
Seu Osvaldo já não lembra mais com precisão. Mas Rui Pfützenreuter se mandou pra Porto Alegre num dos 365 dias do ano de 1965, na mesma época em que o marechal nordestino Humberto Alencar Castelo Branco começava a arrochar as cabeças políticas que pensavam neste país.
E foi por ali mesmo naqueles bancos perseguidos da escola de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que Rui sentiu ser desenhada a sua morte.
- Seo Vadico, o Rui está preso!
O general do batalhão, no outro dia pela manhã, estava do lado protegido da mesa, de costas para a parede. Na sua frente o funcionário de Nova Orleans, homem acostumado com ordens de comando desde a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, onde esteve lutando por um dos lados da pátria.
Osvaldo ouviu o general:
- Eu gosto muito do seu filho, mas ele está na beirinha, querendo cair no comunismo.
Era dia dos pais, e o velho Vadico ali no batalhão:
- O senhor podia soltar o meu filho?
O general:
- Ele é bom, mas precisa ficar um pouco na cadeia!
De novo na sala, a banqueta do piano, o velho soldado constitucionalista sentado nela, um soluço rasgando a garganta do homem quase fora de combate. - Ele veio todo cadavérico, mas me disse: “Não se impressiona comigo, a vida é assim mesmo, temos que lutar. O dia que me matarem serei o homem mais feliz do mundo.”
A espera na prisão foi até às 3 horas da tarde, até que um carro já cortava os caminhos pela saída de Porto Alegre, passando perto das favelas da cidade: - Rui:
- É por isso que eu me bato.
__________
São 10 horas da manhã, 1972. Um amigo dele está sentado na mesa da cozinha, esperando o almoço que vai ser servido por dona Leonia. Mas ninguém comeu direito.
- O Rui está preso em São Paulo, e só o senhor que é pai é que pode procurar por ele lá.
O mesmo automóvel que veio de Porto Alegre corta agora as estradas que vão levar até São Paulo, com o casal Pfützenreuter sofrendo a mesma luta do filho trotskista. A primeira parada foi direto no Dops.
- Quero saber se meu filho está preso aqui?
- Não está!
Pelos corredores daquele velho casarão na vizinhança da Estação Julio Prestes era somente isso o que as bocas balbuciavam e os homens, disfarçados com suas gravatas, respondiam.
Ninguém, ou melhor, quase ninguém se importa com os gritos e o choro do velho Osvaldo.
Isto até que um sussurro sai rápido pela boca de um homem apressado e amedrontado:
- O meu filho era jornalista da Visão. Eles também sempre negavam mas ele está aí.
A caminhada agora é pelos lados da Rua Tutóia, comando da Operação Bandeirantes, hoje transformada no Doi-Codi do II Exército. Nada!
A viagem se espicha até o Rio de Janeiro. Num escritório do centro da cidade, o advogado Sobral Pinto começa a preparar um “habeas-corpus”, e também explica que os contatos devem ser diretos, pois o telefone está grampeado. O cardeal dom Ivo Loscheider conforta:
- Estamos numa situação perigosa.
A família Pfützenreuter está novamente no automóvel, voltando para São Paulo, balbuciando pelos corredores do Dops e da Operação Bandeirantes. Um companheiro de Rui apressa a angústia:
- O senhor deve ir ao IML.
Neste momento o velho Osvaldo já está vasculhando os livros de registro do Instituto Médico Legal de São Paulo. E num daqueles calhamaços de fotos e nomes estava lá, assinalado com duas setas vermelhas: Rui Osvaldo Pfützenreuter. Preso no dia 15 de abril de 1972 e enterrado no mesmo dia. 
E mais uma vez aqueles homens disfarçados com suas gravatas responderam:
- Para pegar o corpo, o sr. tem que falar com o Dr. Tácito.
É sexta-feira. O delegado do Dops está com o bilhete na mão, já falando:
- Eu não sei nada disso não. O presidente Médici está aqui hoje. Passe na segunda-feira.
Osvaldo vai saindo do Dops, para voltar na segunda-feira, mas vai saindo com uma certeza:
- Meu filho foi morto sob torturas!
E hoje que já é segunda-feira, o dr. Tácito do Dops manda o velho Osvaldo para outro dr., o Bueno.
- Seu filho teve um entrevero com a Polícia...
E começou a mostrar papéis e fotos sobre a mesa, fotos do trotskista Rui.
- Meu filho viu uma fotografia e me passou. Era uma foto de meio corpo. Na testa havia uma mancha preta, e outra no peito. A tortura começou por ali.
Mas o dr. Bueno foi logo explicando, que o corpo só o exército pode dar autorização para sair, que isto vai ser decidido numa reunião na quarta-feira, e que o sr. pode levar o seu filho, mas só se for em um caixão de zinco, lacrado.
O cadáver de Rui foi desenterrado da cova rasa do Cemitério de Perus 25 dias depois da morte, numa quinta-feira, um dia depois do velho Osvaldo ter lido protocolo do mesmo cemitério:
- Morto no dia 15 e enterrado no dia 19.
Nesta mesma quinta-feira de 1972, Osvaldo Pfützenreuter fez a sua última viagem, carregando o corpo do trotskista Rui Osvaldo Aguiar Pfützenreuter para o cemitério de São Judas Tadeu, que fica na coluna mais alta da silenciosa cidade de Nova Orleans.

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